Gente de fibra em construção

Ou: Assim nasceu uma Mulher Coragem


Aos seis anos fiquei doente. Tuberculose, diagnosticou o médico. O meu avô tinha tuberculose, ter-me-ia contagiado.

Comecei por um comprimido ou dois (não me lembro), passei para 3 ou 4, depois para 4 ou 5 mais umas injenções e a minha heroicidade começa com estas injecções.

Vivíamos na altura num monte alentejano onde a minha mãe “dava escola”, como se diz no Alentejo. Era professora, portanto, e ensinava meninos dos montes em volta, de todos os níveis de ensino, num espaço improvisado para o efeito junto à feitoria.

No primeiro ano vivíamos num quarto ela, eu, a minha irmã e depois também o meu primo e dormíamos todos na mesma cama. No segundo o meu pai foi lá ter e aí passámos para uma pequena casa. 


Foi nessa casa que começou a fase das injecções. Como não havia médicos nem enfermeiros, tinha que ser ela própria a dar-me as ditas. Ora ela mal agarrava na seringa começava a chorar e a tremer e a dizer que não era capaz. Então eu, nesta altura já nos oito anos, tomava conta da situação e dizia: “Força mãe, não custa nada, vá lá.” E ela tentava uma vez e outra e outra até que lá conseguia espetar a agulha.

Passava grande parte dos dias “em repouso”, na cama. Qual passear, qual brincar, qual quê? Mesmo à escola só tinha autorização para ir de manhã. Ler e ouvir rádio eram as minhas principais ocupações.

Que estava quase boa disse o médico em vésperas de eu fazer nove anos e de os meus pais emigrarem para Lisboa. O meu pai, que tinha trocado o ofício de carpinteiro pelo de guarda florestal para poder estar com a família, quando um caçador lhe apontou uma arma e avisou que era melhor ele portar-se bem, disse: “Nã, vou-me embora e é já amanhã.” E por Lisboa arranjou trabalho nas obras, encontrou casa e nós lá fomos.

O novo médico ao ver o resultado da primeira radiografia mandou-me para o hospital, onde fiquei internadinha da silva, com diagnóstico indefinido e poucas esperanças de vida.

Pouca força tinha para andar, correr nem pensar. As escadas da estação da CP de Paço D’Arcos, que tinha que subir sempre que ia ao médico, eram um martírio dos muito grandes.

Mas, Guerreiro de nome, e na verdade, acho eu hoje, guerreira em todos os poros, salvei-me. 


***

Este foi o meu primeiro embate consciente com a medicina ocidental. E digo consciente porque acho que as coisas começaram logo na maternidade. Colocada em perigo de vida por um médico, mas simultaneamente acompanhada por uma farmacêutica amiga da família, fui também salva por médicos.

Não me consta que mais alguém da família tenha sido contagiado pelo meu avô, nem que eu tenha contagiado outros, mesmo dormindo da mesma cama durante um ano com três pessoas.

Diagnósticos e estratégias médicas erradas que pioram a situação são sempre hipótese, afinal errar é humano, por isso convém ouvir sempre outros especialistas e nomeadamente com outras abordagens. 



***


Tive que ser mãe da minha mãe e dar-lhe coragem.

A minha mãe sempre foi uma mulher cheia de medo, viveu uma história de vida ainda mais difícil que a minha, ter medo é um resultado natural, e talvez isso tenha ajudado eu a desenvolver a coragem. Alguém tem que ter coragem para fazer as coisas andarem para a frente.

Conheço muitos casos assim, em que pais e filhos trocam papéis.

E comecei a contar esta história de mim para a transportar para os dias de hoje, para o medo generalizado nos adultos – nos pais, educadores, professores, profissionais de saúde – e de como sinto estas crianças condenadas a tornarem-se adultos mais cedo para poderem ter a força que os adultos não têm, senão acabamos todos a morrer enterrados em casa, porque a doença faz parte da vida, e se não sairmos para não ficarmos doentes, a doença vai a casa ter connosco. A doença e a morte não precisam que lhe abram as portas. Elas surgem onde existir matéria.

Mas ao lembrar a minha coragem vem-me um sorriso: Eureka! Grande geração de coragem que vamos ter nos meninos de hoje. Passam de uma sociedade de abundância em grande parte fictícia, em que tudo parecia fácil, para o seu oposto: uma sociedade onde de repente até respirar é difícil; onde só se vê os sorrisos dos outros dentro de casa, onde os afectos são proibidos, sair do seu perímetro ou estar com amigos pode ser motivo de repressão além de censura social, onde ser pessoa começa a ser proibido.

Como o que não nos mata nos deixa mais fortes, diz o ditado e “ah pois é”, digo eu, vamos ter daqui a uns anos adultos de fibra. E é bem necessário para a construção, a partir destes tristes escombros, de um mundo de verdade, onde as pessoas tenham direito à vida, à integridade física, a serem respeitadas e a respeitarem, onde tenham direito a expressarem quem são. Um mundo em respeito pelo todo, a começar pela natureza que nos mantém vivos.


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