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A mostrar mensagens de 2020

Ode a Mim

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Posso prescindir de sapatos, de restaurantes, de pinturas para o rosto, da Liberdade não. Posso prescindir de televisão, máquina de lavar loiça, daquele vestido tão giro, da Dignidade não. Prescindo de hotéis, guias turísticos, tudo o que for de luxo, da Escolha do Meu Caminho não. Prescindo de conversas de treta, de amigos da onça, de Abraçar a Vida em toda a sua plenitude não. Prescindo da sabedoria dominante, das suas escolas, dos seus doutores, da sua política, da Minha Vida não. Hoje escolho honrar-me e honrar todos aqueles que lutaram pela dignidade dos seres e pela liberdade, fossem quais fossem as circunstâncias. Não sei que virá a seguir, sei que o meu caminho sempre foi este e vai continuar a ser. Nem sabia o que era isso e já sofria pelos animais maltratados. Ainda era criança e já era do lado dos ciganos que ficava, dos meninos mal-comportados, de todos aqueles que eram marginalizados. Apenas tinha ouvido falar em homossexualidade e já me posicionava na bissexualidade, após

Presto-te homenagem, pai

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Hoje presto-te homenagem. Presto-te a homenagem que em vida nunca fui capaz porque não consegui ver. Porque não conseguia ver que para lá de um rosto normalmente ausente, triste, cansado, duro havia uma vida não vivida na sua plenitude, havia sonhos não realizados ou até nem sequer sonhados. Quando finalmente ficaste velho e sem possibilidade de trabalhar, então pudeste dar ao mundo um cheirinho de quem na essência eras: cheio de alegria, força, coragem, vontade ilimitada de viver em toda a sua pujança. Onde houvesse festa lá estavas a animar com as tuas canções, as tuas danças. Foi preciso adoeceres, daquela doença que fala de ressentimentos guardados no corpo e na alma, que é o cancro, para eu te conhecer. E valeu a pena. Esses dois anos valeram por todos os outros. Afinal gostavas de mim, consideravas-me, respeitavas-me, acreditavas em mim. E que força! Cada vez que saías da cama do hospital, sem massa muscular, só pele e osso, dizias: - Isto agora são três meses para ganhar

Gente de fibra em construção

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Ou: Assim nasceu uma Mulher Coragem Aos seis anos fiquei doente. Tuberculose, diagnosticou o médico. O meu avô tinha tuberculose, ter-me-ia contagiado. Comecei por um comprimido ou dois (não me lembro), passei para 3 ou 4, depois para 4 ou 5 mais umas injenções e a minha heroicidade começa com estas injecções. Vivíamos na altura num monte alentejano onde a minha mãe “dava escola”, como se diz no Alentejo. Era professora, portanto, e ensinava meninos dos montes em volta, de todos os níveis de ensino, num espaço improvisado para o efeito junto à feitoria. No primeiro ano vivíamos num quarto ela, eu, a minha irmã e depois também o meu primo e dormíamos todos na mesma cama. No segundo o meu pai foi lá ter e aí passámos para uma pequena casa.  Foi nessa casa que começou a fase das injecções. Como não havia médicos nem enfermeiros, tinha que ser ela própria a dar-me as ditas. Ora ela mal agarrava na seringa começava a chorar e a tremer e a dizer que não era capaz. Então eu, nesta altura já n

Destemidos

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No aniversário do meu filho, gosto de lhe mandar fotos de tempos que ele não lembra e às vezes nem eu, como é o caso desta.  Gostávamos os dois de brincar aos circos e de fazer equilibrismo.  As outras pessoas assustadas costumavam dizer:  - Não faças isso, o menino cai.  Mas o menino nunca caiu.  Olhando agora esta foto, penso que talvez ela explique como o meu filho é corajoso. Aqui tinha um pouco menos de dois anos e estava num equilíbrio perfeito, sustido pela mãe. Fomos sempre dois cúmplices. - Era como se eu lhe dissesse: voa, voa, eu estou aqui, nada te pode acontecer. Ainda não nadava mas já saltava para dentro de piscinas ou de rios, sem pé. Claro que ia de braçadeiras, ou eu ou algum amigo estava lá para o agarrar. Eram voos seguros, mas eram voos. Até que chegou o dia de voar sozinho e nunca mais parou. Outro dia falámos sobre o medo e ele disse-me que em geral os amigos se escandalizam quando lhes conta as nossas peripécias. - Porquê? – perguntei eu. - Porque têm medo. E ho

O menino que tinha medo de poças de água e a menina que não tinha medo de nada

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- Estás a chorar porquê? É só uma rocha e umas pocinhas de água, as ondas estão lá longe, não vês? Mas não, ele não via, ele sentia um perigo muito grande, ali sozinho, no meio das rochas, só com a amiga, enquanto a mãe lhes tirava uma fotografia. Ela não costumava ter medo de nada. Nem de falar com pessoas que não conhecia, nem de se aventurar pelos campos, entrar onde quer que houvesse uma poça de água. Bem, medo de nada também não, ela tinha muito medo de cães, nem sabia porquê. Já ele só saía agarrado à mãe ou ao pai, e era também quando estava junto deles que se entretinha a fazer judiarias à irmã mais pequena e depois a culpar a mais velha. Protegido sentia-se forte. Sozinho, até de uma simples poça de água no meio das rochas tinha medo. Talvez por isso ela tenha ido conhecer o mundo e ele continuado na sua aldeia. Não que haja algum problema com isso, que não há, excepto se por acaso ele gostasse de conhecer o mundo e por medo não o tivesse feito.

A vida da rosa

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Acordei, abri a janela de par em par e lá estava ela, a olhar para mim, a dar-me os bons dias. Fiquei tão feliz. Falou-me de paz, de harmonia de beleza, isto nestes dias em que o meu coração e pensamentos teimam em juntar-se à confusão lá fora. Demorei-me nela. Dia após dia foi-me dando os bons dias, sempre bela, sempre cheirosa, inspiradora. Ontem continuou a dar-me os bons dias, mas já sem a beleza anterior. Já cansada, um tanto gasta, a dizer-me: Está a chegar ao fim o meu tempo de vigor. Estou a ficar velha, ainda sinto, ainda cheiro, ainda te amo e gosto do teu amor, mas um destes dias transformo-me em estrela. O corpo fica aqui na terra e a luz junta-se às luzes sem corpo que há no céu. Porque, explicou-me ela, as rosas também se cansam de ser belas, também precisam de repousar em pura luz. As rosas, continuou, as pessoas, os pássaros, até os rios e as montanhas se vão cansando. Não adianta não querer morrer, até porque nunca se morre verdadeiramente, há sempre a luz que continu

Os pássaros destemidos

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Pu-lo junto à porta, por baixo do candeeiro onde os pássaros gostam de fazer ninho, com esperança que os espantasse. Mas afinal só espanta-espíritos. Este pássaro suponho que seja o pai dos meninos que estão a crescer nos seus ovinhos, sob o calor da mãe pássara. E pronto, chão acócózado, chinelos também, o próprio espanta-espíritos. Vou pedir a Deus paciência até que os pássaros saiam dos ovos e batam asas. Afinal estamos em tempo de reunião com a natureza e os nossos irmãos animais, sem excepção, e convém não andar para aí a apregoar coisas bonitas e a fazer porcaria. (Como os pássaros, que cantam, cantam, mas depois cagam, cagam... Olha querem ver que não há beleza sem mau cheiro.)

De volta a casa

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A caminho do "grande lago" A minha casa é em casa e o quintal é o grande lago e os campos em volta. Posso ficar em casa andando pelos campos porque raramente aparece alguém e se aparecer são tantos os metros quadrados que o difícil mesmo é cruzarmo-nos perto. A minha casa fica numa vila com menos de 2000 moradores. Mesmo a capital de distrito, a 11 km, tem menos de 30 mil. Aqui os contágios são difíceis porque o campo é em muito mais abundância que as pessoas. Já nas grandes cidades as pessoas não têm campos, vivem numa espécie de celas em cima umas das outras. Não sabem o que é respirar ar puro, ter silêncio, tranquilidade. Pelo "meu quintal" selvagem Nas cidades as pessoas perdem-se de si e depois, claro, adoecem. E como estão perdidas de si não sabem como recuperar das doenças. Tomam muitos comprimidos, fazem operações e deixam de fazer aquilo que lhes faz bem com medo que lhes faça mal, ficam mais tristes e, claro, mais doentes. Para ser

Sou todas as coisas

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Eu tenho em mim todas as cores do mundo (e "todos os sonhos", como o poeta). Tenho em mim todos os sexos ou géneros, ou o que forem as infinitas nuances desta coisa insondável de ser pessoa. Tenho em mim todos os animais, todas as plantas, mares, rios, glaciares, montanhas. Tenho em mim todas as dores e todas as alegrias. E também tenho em mim todas as coisas horríveis do ser humano e do universo todo. Por isso reconheço-me agredida e agressora. Às vezes agrido sem saber, outras dou por isso mas há algo mais forte que me leva. O mesmo com o amor. Percebo por vezes que dou amor em níveis muito superiores ao que posso controlar. O mesmo com tudo. São reconhecimentos que os já muitos cabelos brancos e a capacidade de observação que tenho vindo a treinar me vão mostrando. Boquiaberta amiúde com as descobertas. Por isso me tento controlar quando me apetece sair a correr a condenar os outros (raramente me tento controlar nos aplausos). Não, nada é tão simples quanto parece,