Presto-te homenagem, pai
Hoje presto-te homenagem. Presto-te a homenagem que em vida
nunca fui capaz porque não consegui ver. Porque não conseguia ver que para lá
de um rosto normalmente ausente, triste, cansado, duro havia uma vida não
vivida na sua plenitude, havia sonhos não realizados ou até nem sequer
sonhados.
Quando finalmente ficaste velho e sem possibilidade de
trabalhar, então pudeste dar ao mundo um cheirinho de quem na essência eras:
cheio de alegria, força, coragem, vontade ilimitada de viver em toda a sua
pujança. Onde houvesse festa lá estavas a animar com as tuas canções, as tuas
danças.
Foi preciso adoeceres, daquela doença que fala de
ressentimentos guardados no corpo e na alma, que é o cancro, para eu te
conhecer. E valeu a pena. Esses dois anos valeram por todos os outros.
Afinal gostavas de mim, consideravas-me, respeitavas-me, acreditavas em mim.
E que força! Cada vez que saías da cama do hospital, sem
massa muscular, só pele e osso, dizias:
- Isto agora são três meses para ganhar forças e voltar ao
normal.
Num desses momentos de recuperação fomos os dois fazer Tai
Chi para a Torre de Belém. Espantei-me a ver a tua garra e alegria a fazeres
aquilo tudo bem-feito, enquanto eu trocava as pernas e os braços e quase me
estatelava no chão. Depois subimos à Torre de Belém.
Perante estas façanhas, os médicos (sempre incansáveis, até
porque tu conquistavas toda a gente) disseram:
- Não, enganámo-nos, não pode ter cancro.
Mas tinhas mesmo. Vendeste cara a tua morte, que apesar dos 86 anos não te apetecia nada ires-te embora, logo agora que finalmente estava a ser tão giro.
Eu hoje homenageio-te e agradeço ter saído a ti – sempre me
disseram isso e hoje percebo claramente que te saio pelo menos em muito: tenho
o teu mau feitio, digo o que quero e o que não quero, mas digo; tenho a tua
garra de viver, o amor pela alegria, pelas festas, danças e cantos; tenho
capacidade de análise e discernimento e uma capacidade inquebrantável de seguir
em frente, mesmo quando mais ninguém acredita ou quer ir por ali.
Um pai que também foi criança, e que em criança era deixado dias seguidos sozinho a tomar conta de um moinho isolado, que desde os cinco anos teve que ser responsável pela sua vida e de bens familiares, certamente terá muitas dificuldades nos afectos, mas não deixará que falte nada à sua família, pois afectos não teve, não aprendeu, mas responsabilidade da vida é sua especialidade. Assim foste tu. Assim são na verdade muitos homens, parcos nos afectos que não conhecem, abundantes no que sempre aprenderam. Assim somos todos, cada uns nas suas áreas.
Hoje respeito-te imensamente, honro-te e desejo que sejas
imensamente feliz por onde quer que andes. Aqui já se sabe que continuas vivo.
Aqui no meu coração, na barra do Tejo e no quintal. A tua estrelinha ilumina
continuamente.
Hoje faz 96 anos que nasceste. Amo-te meu pai.
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